Gatilhos, acessos e afetos
Recentemente fui pego de surpresa ao ouvir o podcast Medo e Delírio em Brasília. No final do episódio de 13 de julho entrou uma fala do crítico de cinema Bruno Carmelo, um excerto do seu vídeo “Quem tem medo do sexo no cinema?” no canal Meio Amargo, mantido por ele mesmo no YouTube. Dias depois, comentei com ele pessoalmente a felicidade de perceber que nossas questões do audiovisual teriam uma nova arena de discussões. Mal sabia eu naquele momento que logo me animaria a participar do debate.
Pois bem, em sua fala, Bruno denuncia um certo excesso de pudor no público do cinema, com uma maior resistência ao uso de cenas de sexo. O que não prestei atenção à primeira ouvida, confesso e culpo a empolgação da surpresa por isso, é que no começo da fala de Carmelo há uma problematização do uso de alerta de gatilhos antes da fruição estética. Segundo ele, o papel da arte é muitas vezes de exatamente provocar a plateia das mais diversas formas. A tal redoma criada pelo alerta de gatilho influenciaria negativamente a experiência, nesse raciocínio.
Felizmente esse comecinho da fala de Bruno não passou despercebido pela cineasta Eliza Capai, que rebateu frontalmente o discurso do crítico no episódio seguinte do podcast. A diretora enxerga o aviso de gatilho como um cuidado que se presta ao público, para que cada pessoa decida se está preparada para enfrentar aquele tema que pode suscitar algum tipo de mal-estar psíquico.
Excesso de cuidado
Diante desses dois pontos de vista, situo-me no meio. Avalio que o aviso de gatilho se faz necessário em alguns casos, mas também percebo alguns exageros e discrepâncias. O filme mais recente de Capai é o documentário Incompatível com a Vida, que trata sobre gestações interrompidas porque o feto não era viável. Nesse caso, o alerta de gatilho referente ao tema aborto pode cair na vala da redudância, considerando que o espectador entra na sala de projeção com um mínimo conhecimento prévio do filme a que irá assistir.
Outra coisa que podemos discutir (em outra oportunidade, para manter este texto em um tamanho mais palatável) é quais temas merecem o tal alerta. A princípio, qualquer coisa pode causar gatilho em alguma pessoa, por conta dos caminhos tortuosos pelos quais nossa psique consegue se enveredar.
Entretanto, o que quero discutir agora é a forma como é entregue o alerta de gatilho. As cartelas de texto antes de começar um filme podem realmente direcionar demais os olhares e comprometer desnecessariamente a experiência de alguns espectadores. Por mim, essas informações podem acompanhar os detalhes sobre classificação indicativa por idade. Assim, quem se sensibiliza com temas específicos pode consultar sobre os potenciais incômodos. Se formos tomar como comparação outros avisos importantes, o alerta de gatilho deve ser tão acessível quanto o aviso aos alérgicos em produtos alimentícios.
Cuidados hierarquizados
No entanto, a despeito de que lado da questão se está, espera-se alguma coerência interna uma vez que se decide usar tal expediente. Digo isso pela experiência desagradável que tive ao ver o seriado Bebê Rena — alguns spoilers adiante, já aviso. No segundo episódio, Martha (Jessica Gunning) coloca Donny (Richard Gadd) contra a parede de uma localidade erma e o abusa sexualmente, colocando sua mão sobre a genitália do rapaz, claramente contra a vontade dele. Nada de aviso de gatilho nesse caso.
Em um episódio mais adiante, Donny é abusado por um roteirista. Nessa situação, os produtores julgaram necessário um aviso de gatilho no começo. Apesar da segunda situação ser mais extremada (e de saber que há diferenças estruturais quando o fator gênero entra em campo), não avisar do potencial danoso do primeiro exemplo de violação sexual menospreza a dor de quem se impactou com o avanço executado pela personagem feminina. É como se a série dissesse: “essa sua dor é uma bobeira, essa outra dor aqui é que merece mais cuidado”.
Cuidados inescapáveis
Finalmente, a queixa com a presença do alerta de gatilho me lembrou outro assunto. Durante o último Cine PE, uma conversa antiga foi requentada. As legendas que ajudam surdos e ensurdecidos a compreender os filmes seriam um incômodo para os demais espectadores. Assim, alguns críticos expressaram o desejo de abolir tal ferramenta de acessibilidade.
A comparação entre os dois assuntos não me parece exagerada, uma vez que consigo perceber que o privilégio (de ouvir ou de não de preocupar com gatilhos) entra na frente do cuidado com outras pessoas. A diferença é que a acessibilidade precisa estar na tela, enquanto o alerta de gatilho pode se reservar para outro canto, como expliquei acima. No final, eu prefiro sacrificar um pouco do meu conforto para que mais gente participe do rolê. Podemos pensar em legendas menos intrusivas, feitas por especialistas na área, mas sua total eliminação é simplesmente uma falta de empatia.
Um amigo sempre diz que um dos conhecimentos mais valiosos que um ser humano pode ter é a noção de que não somos os únicos no mundo. Sendo assim, antes de egoisticamente fazer birra para preservar sua sacrossanta experiência individual, que não pode ser contaminada por recursos de acessibilidade ou avisos de gatilhos, vamos olhar como estamos nos esforçando para que o máximo de pessoas possam acessar o audiovisual, apesar de suas necessidades e fragilidades individuais.